por César Faria
Está prestes a ser julgado pelo STF, o RHC 166.334- SC que poderá levar milhares de empresários, meros devedores do ICMS, a responderem a processo criminal por apropriação indébita tributária, mesmo tendo declarado o imposto devido. Dispõe o art.2º, II, da Lei 8.137/90, que constitui crime contra a ordem tributária, “deixar de recolher, no prazo legal, valor de tributo ou de contribuição social, descontado ou cobrado, na qualidade de sujeito passivo de obrigação e que deveria recolher aos cofres públicos”.
É certo que a escrituração contábil não afasta, por si só, o crime de apropriação indébita. Assim é que, no caso das contribuições previdenciárias, o empresário que desconta do empregado a parte por este devida e deixa de recolher o quantum retido, comete, em tese, apropriação. Isto porque, por disposição expressa de lei, passa a ser o sujeito passivo da obrigação, mesmo sem revestir a condição de contribuinte, como responsável tributário por substituição. Doutro lado, a parcela devida pelo empregador não recolhida é tratada como simples dívida previdenciária, porque ele é o contribuinte e, nesta condição, sujeito passivo da obrigação tributária.
De forma semelhante, ocorre com o ICMS! O deslinde da controvérsia passa pelo alcance das expressões “descontado ou cobrado” contidas no tipo penal, que não pode prescindir da análise da sujeição passiva tributária, para a devida correlação entre os dois ramos do Direito interligados. O primeiro passo é buscar no CTN a definição de sujeito passivo, que se bifurca entre contribuinte e responsável, para perceber que somente desconta ou cobra aquele que está na condição de responsável, quando, mesmo sem revestir a condição de contribuinte, sua obrigação decorre de expressa disposição de lei.
A controvérsia advém da natureza de imposto indireto do ICMS, que não se confunde com a questão da sujeição passiva tributária, significa apenas que o custo desse imposto, assim como outros, costuma ser repassado, do ponto de vista econômico, e não jurídico, ao consumidor final. Este o ponto central: ainda que o custo do ICMS componha o valor do produto e o consumidor pague o preço, ele não é o contribuinte do ponto de vista jurídico, não é o sujeito passivo da obrigação, tanto assim que o Fisco nada dele pode exigir.
Neste caso, o sujeito passivo da obrigação tributária é a própria empresa, daí, não havendo responsabilidade por substituição, não se pode falar em apropriação, mas, apenas, de mero inadimplemento da obrigação de pagar o tributo pelo próprio contribuinte. Por conseguinte, se a empresa lança suas vendas, sem omissões dolosas ou manobra fraudulenta, escriturando o ICMS devido, não haverá nenhum crime, de modo que, se deixar de pagar o imposto, será simples inadimplente da obrigação tributária. Note-se que, com a escrituração, não haverá dificuldade na constituição e cobrança do crédito tributário, com juros, multas e correção monetária, e os privilégios e garantias que lhe concedem o CTN e a Lei 6.830/80, assegurando-se o fim último da tributação, o atendimento das necessidades vitais da coletividade.Não se pode olvidar do caráter subsidiário do direito penal, ao qual somente se deve recorrer como ultima ratio, quando outros mecanismos de controle se mostrarem ineficazes. Proceder a desautorizada interpretação extensiva do tipo penal em discussão, para alcançar relações tributárias havidas com tributos indiretos constitui inadmissível retrocesso à prisão por dívida, vedada pela Constituição.*César Faria é advogado, autor de livro sobre crimes tributários, professor da Ufba, mestre e doutor em Direito.
Fonte: Bahia Notícias